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terça-feira, 30 de julho de 2013

Concentração: aprendendo a pensar sem palavras

"Palavras e dizeres também são enganadores; calmo, descanso minha mente no estado sem esforço." (Milarepa, A Canção dos Doze Enganos)


Em uma fase inicial do aprendizado da concentração, o praticante pensa por meio do recurso de sua linguagem nativa, usa mentalmente seu próprio idioma (português, inglês, guarani, karib, mandarim, cantonês, árabe, persa etc.) para pensar. Sua mente aprendeu a pensar idiomaticamente e não é capaz de fluir sem recorrer à linguagem interna.

Ao exercitar a imaginação consciente, a mente vai se desprendendo da necessidade de recorrer ao idioma e passa a pensar de maneira mais imaginativa. A pessoa, durante suas práticas, deixa de conversar consigo mesma e visualiza (internamente) os processos nos quais se concentra de forma cada vez mais clara. Também poderá ouvir sons relacionados àquilo em que está se concentrando. Caso tente analisar as visões e sons que começam a se desenvolver em sua imaginação, deterá o seu fluxo.

A imaginação fluente em torno do lakshya é aquilo que as pessoas chamam de pensamento único ou mente concentrada. É uma imaginação objetiva, que não muda de tema a todo instante como ocorre com a imaginação comum. 

Se o praticante estiver se concentrando em uma cachoeira, não precisará dizer para si mesmo "esta água é cristalina, cai sobre as rochas e se esvai ao longo do curso do rio". Simplesmente visualizará o processo, escutará os sons da água, mas sem dizer nada para si mesmo, em silêncio interior. Esse esvaziamento do falatório interior assinala o princípio da aquietação da mente.

Não é muito fácil atravessar esta primeira etapa, pois a mente foi acostumada durante toda a vida a tagarelar e quer insistir em seus velhos hábitos. Nossa função imaginativa está atrofiada, pois não a utilizamos senão da mesma forma mecânica, subjetiva e superficial de sempre. A imaginação comum, mecânica, é superficial porque não se aprofunda em nada, mariposeia aqui e ali, mudando constantemente de objetivo. É uma imaginação subjetiva, pois não se detém em nada por mais de alguns segundos. O poder imaginativo está atrofiado devido ao desuso, entretanto, pode ser perfeitamente desenvolvido se o exercitarmos diariamente.

Podemos pensar silenciosamente de forma concreta ou de forma abstrata. A visualização das partes e dos detalhes anatômicos de uma planta é um exemplo de pensamento concreto. A reflexão sobre as virtudes espirituais, como a compaixão, é algo mais abstrato. É muito mais fácil pensar silenciosamente de forma concreta do que de forma abstrata. Um principiante não conseguirá pensar de forma abstrata sem recorrer às palavras, será impelido a conversar consigo mesmo. No entanto, dizem os mestres que o adepto, à medida que se desenvolve na meditação, vai aprendendo a pensar de forma cada vez mais abstrata e silenciosa, pois vai desenvolvendo seus sentidos internos e adquirindo progressiva experiência. Em outras palavras, aquilo que para nós é exageradamente abstrato, para o adepto desenvolvido é algo concreto e palpável, que ele vivencia de forma direta por meio de seus sentidos internos, assim como nós vivenciamos o mundo físico de forma sensorial.

A aprendizagem do pensar sem palavras requer, então, que exercitemos inicialmente a capacidade de pensar (imaginar) silenciosamente sobre algo concreto. Detalhes anatômicos, funcionamentos, funções, estrutura interna e constituição físico-química de objetos sensíveis (plantas, rochas, nuvens, rios etc.) servem como ponto de partida para a prática da imaginação. Saberemos que a imaginação está mais ou menos desenvolvida quando formos capazes de visualizar o objeto com certa nitidez supra-sensorial. Quando, sentados em nosso quarto e imaginando uma cachoeira, começarmos a "ver" e a "ouvir" a cachoeira, com os olhos fechados, isso indicará que a imaginação está se desenvolvendo.

Por mais sofisticada que seja a linguagem utilizada na conversa que alguém tenha consigo mesmo, será tão somente um indício de que a concentração não se aprofundou, ainda está em um nível superficial.

Quando as imagens e sons internos começam a fluir, o praticante deve deixar que fluam livremente e tomem o seu curso, sem tentar controlá-las. Aqui reside uma dificuldade, pois o praticante tende a analisar constantemente se o seu curso imaginativo está se desviando do lakshya ou não. Tal análise racional interrompe o processo. O mais indicado é não preocupar-se com tal desvio, esquecê-lo completamente. Dúvidas e checagens a respeito de se estar ou não fazendo as coisas corretamente matam o curso da prática e a sabotam. Portanto, ao mesmo tempo em que buscamos desenvolver o pensamento sem desviá-lo, tampouco devemos nos preocupar em não desviá-lo. Neste nível, começamos a sair da lógica e do racional: queremos nos manter focados no lakshya sem nos preocuparmos em estar focados no lakshya. É normal que a mente considere isso uma contradição e fique confusa. A confusão assinala dúvidas. Se corrermos atrás das dúvidas, voltamos para trás e não avançamos. 

Não há necessidade alguma de entrarmos em conflito com a tagarelice interior, com o intuito de calá-la à força. O mais indicado é abandoná-la, esquecê-la, e nos focarmos completamente em nosso trabalho de imaginar o objeto de forma cada vez mais clara. Quaisquer preocupações que surjam irão atrapalhar, incluindo preocupações bem intencionadas de não nos desviarmos.

É muito fácil pensar aleatoriamente e um pouco difícil pensar de forma específica, ainda mais se o quisermos fazer imaginativamente e sem recorrermos à fala mental.

Conforme exercitamos nossa capacidade de pensar sem palavras, vamos nos libertando do condicionamento racionalista idiomático.  

Pensando silenciosamente no abstrato


Quando queremos pensar sem palavras em algo concreto, que faz parte de nossa experiência sensorial, basta imaginarmos silenciosamente o objeto e tudo o que seja intrínseco ao mesmo. Porém, se queremos pensar em algo abstrato sem recorrer à linguagem, é normal nos sentirmos confusos, como se estivéssemos perdidos, pois faltam-nos imagens. É difícil prescindir das palavras quando queremos pensar em algo abstrato; é muito fácil fazê-lo ao pensarmos em algo concreto.


Se tentarmos descartar as palavras ao pensarmos em um bambu, podemos fazê-lo com certa facilidade, bastando para isso imaginar o bambu, sua cor, textura, forma etc. mas não podemos fazer o mesmo se quisermos concentrar o pensamento no Atman. O motivo é que o bambu faz parte de nossa experiência sensorial enquanto o Atman não faz, pois, devido ao nosso adormecimento, não temos cotidianamente experiências diretas, conscientes e objetivas com o Atman. Se quisermos nos concentrar e refletir silenciosamente na frase "Sou o Atman", teremos que apelar para o sentir, pois não há formas físicas que correspondam ao sentido de tal frase e sirvam para refletir silenciosamente na mesma. O sentir é uma espécie de faculdade cognitiva silenciosa, distinta do intelecto e dos raciocínios, que permite diferenciação, discriminação e discernimento. Podemos sentir, por exemplo, a diferença entre os sabores da laranja e da mação, ainda que não consigamos conceituá-los com exatidão; podemos sentir o sabor da água pura, que escapa totalmente às definições, o sabor do vento e do calor, entre outros. 


Quando percebemos algo no mundo físico, uma pessoa ou um cavalo por exemplo, sentimos um "algo" específico em relação àquilo. Esse "algo" possui um teor qualitativo indefinível e corresponde a uma forma interna de sensorialidade. É exatamente este "sentir" específico que pode ser usado para nos concentrarmos em algo abstrato sem nos valermos do recurso da palavra, da linguagem e dos conceitos.


Obviamente, imaginações conscientes espontâneas podem acompanhar o processo. Quem trata de adormecer concentrando totalmente sua atenção na sensação interior provocada pela frase "Sou o Atman", experimentará visualizações, "closed eyes visions" e experiências semelhantes a sonhos relacionadas ao tema em que se concentrou. Neste caso, o lakshya é a sensação interior de que se é o Ìntimo.


Em si mesmo, o  Atman não é abstrato, mas nossa experiência atual com o Atman, por ser subjetiva, é abstrata.