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sábado, 22 de setembro de 2012

Libertando-se da ilusão dos opostos

Compreendendo o caráter ilusório do mundo

Milarepa e outros santos mestres relataram que compreendiam o caráter ilusório de tudo, incluindo dos objetos do desejo e de temor. Ensinaram que o desinteresse pela matéria advém da compreensão de seu caráter ilusório. Mas o que significa a expressão "compreender o caráter ilusório do mundo"?

Compreender o caráter ilusório dos elementos que nos rodeiam, do mundo em que vivemos e daquilo que desejamos ou tememos é compreender que os mesmos não passam de formas mentais criadas pela mente, desprovidas de realidade. São artifícios que não existem em si mesmos. A essência de um pássaro não é o que vemos, assim como não o é a essência de um belo carro ou de uma linda mulher. As características que percebemos nas coisas são atribuídas por nossa mente. Uma mulher desejável não é desejável em si mesma, se o fosse, seria desejável para todos os seres, todos criaturas a veriam como desejável. Um objeto qualquer (ex. um tênis) é desejável apenas para algumas pessoas, sendo desinteressante ou detestável para outras. Se as coisas não são desejáveis em si mesmas, então o são para alguém, ou seja, em relação a alguém. E, se o são somente em relação a alguém, isso significa que o caráter desejável da coisa está dentro e não fora, além de ser subjetivo. Em suma: aquilo que vemos e consideramos desejável não existe, é somente uma forma mental, uma maneira de entender e de perceber as coisas.

O boneco de vidro que está enfeitando a sala não é, em si mesmo, exatamente como o vemos. Vemos uma imagem forjada pela mente, através dos sentidos. O mesmo objeto pode ser percebido de formas distintas por outras pessoas ou por animais de outras espécies. Se o olharmos com o microscópio, através de câmeras de raios X, infravermelho ou ultravioleta, o veremos de forma distinta, pois entre os sentidos e a consciência está a mente, dando às percepções o seu tom e sua nota tendenciosa. Como a coisa em si mesma não é percebida, pois é infinita e sua infinitude escapa à mente, o que percemos é uma imagem ilusória. Não vemos os objetos do mundo de forma integral, mas de uma forma parcial, muito limitada. Esta é a ilusão da qual escapamos durante a meditação.

Quando desejamos ou tememos de forma intensa alguma coisa, isso deve à uma sólida impressão de realidade conferida ao objeto pela mente. Acreditamos piamente, sem sombra de dúvida, na realidade daquilo. Não é o objeto em si que desejamos ou tememos, mas sim uma forma criada por nossa mente.

Compreender o caráter ilusório do mundo é compreender que o mesmo não existe, tal como o vemos. Aquilo que desejamos inexiste e aquilo que tememos é falso, pelo simples fato de que não correpondem ao que imaginamos. 

Quando meditamos, escapamos temporiariamente da ilusão e, quando o Ego morre, as ilusões deixam de existir de forma definitiva.

Libertando-se dos opostos

Dizem também os veneráveis e santos mestres que estamos presos aos opostos. Que opostos são esses? 

Os opostos aos quais a mente está presa são as características que percebemos nas coisas. Quando achamos algo bonito, temos a fealdade como referencial, quando consideramos algo bom, temos a maldade como referência, quando sentimos prazer, temos a dor como referência e assim por diante, ainda que não estejamos conscientes disso. 

É pelos opostos que os objetos do mundo adquirem suas qualidades (para nós). Nosso modo de entender as coisas oscila entre os opostos: para nós, as coisas são boas ou ruins, belas ou feias, agradáveis ou desagradáveis, grandes ou pequenas etc. Entendemos e percebemos o mundo dentro das polaridades. Esse é o batalhar das antíteses.

Reflita sobre um tipo de mulher que você deseja e descobrirá que a deseja em oposição outro tipo, que possui características contrárias. Analise algo que você teme ou detesta e descobrirá que teme aquilo em oposição a alguma outra coisa, considerada desejável ou inofensiva. Você se sente seguro em certas situações em oposição a outras situações, que provocam insegurança. Aquilo que nos irrita ou incomoda sempre terá o seu oposto, algo que nos proporciona agradáveis sensações de bem estar. Vivemos oscilando entre os opostos.

A mente presa nos opostos é o próprio Ego, uma vez que é o Ego que confere características às coisas. As qualidades dos objetos são aprendidas ao longo da vida, não nascemos sabendo as diferenças. As coisas se tornam o que são (para nós) à medida que o Ego se desenvolve. É pelo contraste que achamos e sentimos que as coisas são boas ou ruins.  Nossa visão de mundo atual resulta de experiências passadas.

Quando meditamos, perdemos a noção dos opostos. Então não há diferença entre dia e noite, doença e saúde, vida e morte, velhice e juventude, antes e depois. Nos libertamos desses opostos e, então, aquilo que nos perturbava deixa de nos perturbar.

A primeira noção que costumamos perder quando praticamos a meditação é a noção do tempo. Perdemos a noção e não sabemos se passou muito ou pouco tempo. Podemos ter a impressão de que se passou  bastante tempo e, ao olhar o relógio, apenas alguns minutos se passaram. Isso ocorre porque escapamos do par de opostos "breve" e "demorado", nossa consciência escapa do tempo por um breve período.

Em seguida, com o avanço da prática, pode ser que escapemos do par de opostos "aqui" e "acolá" ou do "próximo" e do "distante". Então perdemos a noção de onde estamos e deixamos de saber se estamos meditando em casa ou em outro lugar. É comum que, ao voltarmos da meditação, nos surpreendamos por acharmos que estávamos em outro lugar. Nossa consciência escapou temporariamente do espaço.

Essas perdas de noção não fazem mal algum e não são patologias mentais. As noções são imediatamente recuperadas assim que terminemos a prática.

Praticantes avançados e experientes vão se desvencilhando de todas as noções de opostos até o ponto de escaparem completamente desta realidade fenomênica. Escapar dos opostos é libertar a essência da prisão da mente, pois é a mente que entende as coisas de forma dual. Quando escapamos completamente dos opostos, não discernimos entre o alto e o baixo, o feio e o belo, o grande e o pequeno e outras dúadas, pois o nosso discernimento estará funcionando de outra maneira, em sintonia com realidades que estão além do compreensível.

O escape dos pares de opostos não é algo que se consiga por meio da simples força. E, antes, o resultado natural do aprofundamento do pensamento concentrado e do posterior abandono do mesmo.